sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

III. O Dia Nacional do Samba

Quinta-feira, 2 de dezembro de 2004, fim da tarde nas cercanias da Central do Brasil. Como todos os dias, milhares de pessoas se dirigem ao terminal ferroviário. Várias vêm pelo Metrô, centenas descem dos ônibus e, apesar da chuva fina, muitas caminham em direção à estação. A cena é rotineira, mas hoje é diferente. Se as roupas não chegam a mudar muito, o clima é totalmente outro. No lugar do cansaço de um dia de trabalho, animação. No lugar da pressa de chegar em casa, ansiedade pelo que será a noite, afinal dia 2 de dezembro é o Dia Nacional do Samba.

O terminal, um dos maiores do país, por onde passam cerca de 600 mil passageiros por dia , uma vez por ano recebe uma turba diferente. Já do Panteão de Caxias se ouve o batuque do samba. Melhor apressar o passo. O “esquenta” no palco montado em frente à entrada principal da gare está animado. Nas plataformas o tumulto é em ritmo de bloco. A multidão não é composta apenas de trabalhadores voltando aos subúrbios após o dia de trabalho, há pessoas de todos os bairros, alguns vindos direto do trabalho, outros da aula, muitos saídos de casa, arrumados para a festa. Cinco trens, com oito vagões cada, vão levar quase dez mil pessoas à Oswaldo Cruz , lugar onde não existe uma agência bancária ou dos Correios, sem prédios oficiais ou sedes de empresas, nem mesmo hospitais, clínicas ou postos de saúde há. No entanto, uma vez por ano, o pacato bairro residencial se torna talvez a segunda maior centralidade da cidade do Rio de Janeiro .

Em 1996 o grupo de jovens sambistas do movimento "Acorda Oswaldo Cruz", preocupados com a decadência do bairro e liderados pelo compositor Marquinhos de Oswaldo Cruz, criaram o evento revivendo a viagem que, no início do século XX, Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela , fazia todos os dias ao voltar do trabalho. Paulo trabalhava na Lapa e pegava o trem das 18h04, na Central do Brasil e descia em Oswaldo Cruz.

Na época de Paulo da Portela, o samba era perseguido pelas autoridades oficiais, e o único lugar onde podiam compor, cantar e combinar o carnaval era dentro do trem. A Portela ainda não tinha sede. Como Paulo era o líder dos sambistas e voltava para casa no trem que saía às 18h04 em direção à Deodoro, todos iam ao seu encontro, alguns nem sequer trabalhavam no Centro, mas pegavam o trem apenas para fazer samba da Central à Oswaldo Cruz. Em 1996, quando resolveram reeditar o "Trem do Samba", os sambistas ocuparam apenas alguns bancos do último vagão do mesmo trem das 18h04.

Apesar de portelense ter nascido, Marquinhos de Oswaldo Cruz conta que nem sequer sabia da história de que Paulo da Portela fazia samba no trem das 18h04, sabia apenas que era tradição vir cantando sambas quando o carnaval estava próximo. Quando teve a idéia de fazer um "trem do samba" chegou a se valer da cultura como recurso "inventado" que seria uma homenagem à Candeia, que teria feito 60 anos se fosse vivo. Segundo Marquinhos, era preciso um motivo para convencer até mesmo os sambistas de outras localidades a ir para Oswaldo Cruz. Assim foi reinventada a tradição de comemorar o Dia Nacional do Samba com um pagode no trem. Somente alguns anos depois Marquinhos soube que os fundadores da Portela faziam o mesmo no início do século.

Hoje o samba não é mais perseguido, pelo contrário, é festejado, e não são necessárias mais "histórias" para convencer ninguém de ir comemorar o Dia Nacional do Samba em Oswaldo Cruz. Lá, milhares de outras pessoas aguardam as que vêm de trem. São os moradores da região que vieram à pé, os dos bairros vizinhos lotando os ônibus e ainda outros que chegam em carros e vans, apesar de não saberem onde vão conseguir estacionar. Shows em três palcos, rodas de samba programadas e outras surgidas espontaneamente do "lado de cá" e do "lado de lá". Até o clarear do dia 35 mil pessoas circularão pelas ruas mal conservadas, bebendo cerveja, cantando, interagindo. Não há organização ligada à administração pública ou governos, apenas a dos moradores e sambistas. O trânsito não é interrompido, não há policiamento ou estacionamento. Banheiros químicos apareceram pela primeira vez na edição de 2005. Ninguém se importa. Muitas dessas pessoas só vêm à Oswaldo Cruz no dia 2 de dezembro, provavelmente jamais viriam se não fosse o Trem do Samba. Há quem chegue, olhe da estação mesmo e volte em outro trem. Há quem deambule pelo bairro sem saber muito bem para onde ir e acabe voltando. Há uns precavidos que levam "mapas" publicados nos jornais para tentar achar as rodas de samba. Há alguns disputando os poucos táxis que se aventuram na confusão. Há quem fique até alta madrugada, há quem amanheça na roda de samba e vá trabalhar virado na sexta-feira e há ainda quem durma em algum canteiro e acorde com o sol do no rosto.

Assim, Oswaldo Cruz se insere em um mapa especial da cidade, na cartografia afetiva construída no cotidiano dos atores sociais. O jogo da cultura, da força da expressão popular, diz que um lugar existe. Sua existência irá marcar profundamente a identidade do território.


Trecho da minha dissertação de mestrado.

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